30 julho 2017

SUÍCIDIO

imagem retirada do google

SUICÍDIO

Nesta hora, escondida do minha marido, eu não sei quem sou – não mais. Não sei se sou uma mulher, uma garota ou uma galinha. Acho que estou mais para galinha pelo fato de estar no meu computador, escondida, escrevendo essa pequena história de uma mulher cujo esposo, se acordar e a encontrar no computador, desconfiará de adultero e causará uma grande desavença – como já aconteceu algumas vezes.

Uma galinha tem sentimentos além do medo e dos sustos constantes? Pois se tiver, então não sou exatamente uma galinha. Mas o que sou? Muitos que se suicidam, o fizeram por acharem que não se encaixavam neste mundo. Eu acho que me perdi. Acho também que sei o caminho para me encontrar, mas, nesta vida, precisamos ter coragem e eu sou uma galinha, ou me tornei em uma.

Costumava escrever. Escrevia muito e sobre várias coisas; tudo o que me afligia, tudo o que me indignava. Porém, depois do meu casamento, deixei de expelir o que em mim doía. A proibição de ler até tarde da noite, de escrever de madrugada ou a qualquer horário – enquanto ele estivesse – apesar de causar cólera em mim, escrevi muito raramente. Eu podia ler, eu podia escrever quando ele não estava em casa, tinha que controlar meus pensamentos e inspiração para que não houvesse brigas – porque a galinha tinha que dedicar o seu tempo. Não bastava cozinhar, lavar e outras coisas.

Meu primeiro suicídio foi matar a parte de mim – pessoa – que escrevia e lia para refletir e enxergar o mundo com mais poesia apesar da dor. Morri um pouco a cada dia nos quais eu “tinha” que escutar reclamações do tipo: o trabalho; a comida não está bonita; o frango não está do jeito que ele gosta; a roupa não está tão cheirosa; a casa não está tão limpa; estou indo muito à casa da minha mãe; não estou dando atenção; não estou trepando com a freqüência desejada e muitas outras coisas;

Meu suicídio aconteceu várias vezes, quando a pessoa em mim fugia e dava lugar à galinha, que apesar de cacarejar um ‘não’, tinha que cumprir com sua "obrigação". Tantos ‘nãos’ que não foram respeitados. Fui cobrada pelo marido sobre a falta de carinho, mas aprendi que carinho é basicamente estímulos sexuais que precisam terminar em orgasmos clássicos. Desde quando galinha tem orgasmos?

Fico me perguntando quantos maridos e esposas se tornam galinhas. Quantos suicídios são cometidos...

Começo a temer que a galinha em mim também esteja fugindo. E o que serei depois disso? O que ficará no lugar? Hoje a pessoa em mim está um pouco forte, afinal estou escrevendo (é que meu marido não está em casa).

Meu suicídio acontece em vários dias. Há dias em que é menos, em outros é muito. E não depende de mais ninguém além de mim, para que a galinha saia da lama e volte para qualquer lugar e a pessoa em mim reviva, veja, observe, viva, ligue o computador a qualquer hora, escreva sem receios, que seja e esteja.

Xô galinha, xô!

Acho que ela ainda está aqui... (precisos desligar, meu marido está chegando)



Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 30/07/2017
Código do texto: T6068881

05 novembro 2016

SOZINHA?

imagem google/youtube
SOZINHA?

Havia chego em casa há pouco. Estava cansada depois de um longo dia de trabalho onde pessoas falam a todo instante e em muitos momentos quase gritavam. Precisava de longos minutos em silêncio ou simplesmente ouvindo suas músicas favoritas em volume baixo. Antes da música ou da televisão, foi direto para o banho. Queria um banho quente, lavar o cabelo e sentir a sensação e o cheiro confortante do seu creme em sua pele.

Após colocar as coisas que levava diariamente para o serviço e sua bolsa sobre sua cama, foi até a cozinha, abriu o armário marrom de canto de onde retirou, da parte superior, um caneco azul, encheu-o de água e colocou no fogo para ferver. Separou os potes onde guardava o açúcar e o pó de café e os deixou sobre o balcão ao lado do seu fogão cookie que tanto gostava e que demorou a adquirir.

Voltou ao quarto, no caminho achou a casa muito silenciosa e pensou em voltar para ligar a televisão só para fazer barulho de fundo de modo que não se sentisse completamente sozinha. Ela, apesar de gostar do silêncio, gostava também de estar perto das pessoas, mas precisava ser as pessoas dela. Ficou com preguiça e não retornou para ligar o aparelho televiso. Estava muito cansada. Continuou até o quarto onde pegou seu roupão felpudo de um rosa muito claro e foi ao banheiro.

O banheiro era pequeno, com uma pequena janela quadrada de madeira envernizada no tom mais escuro. Era preciso acender a luz apesar de ainda ser início do por do sol. Como morava sozinha, costumava deixar a porta do banheiro aberta, mas naquele dia sentiu algo estranho. Imaginou uma sombra vinda do corredor e se formando em frente à porta. Fechou-a, não por completo.

Tirou suas roupas e as colocou no sexto de roupas sujas. Verificou, por algum motivo, a calcinha bege com rendas rosa, cheirou-a e depositou no sexto. Completamente nua, olhou para o próprio corpo diante do grande espelho e pensou consigo mesma que poderia se depilar na semana que vem. Massageou os seios, não grande e nem pequenos. Os bicos dos mamilos estavam apontando para frente e com o dedo indicador, acariciou em torno da aréola delicadamente para verificar se havia alguma forma de verruga. Aquele contato a fez ter um breve arrepio e ao olhar para o espelho, viu a brecha da porta aberta e com dúvidas do que poderia estar do lado de fora, mesmo sabendo que não haveria nada, cobriu o seios com a mão e o braço, abriu a porta e colocou a cabeça para fora a verificar se realmente não havia mais ninguém na casa. “Estou ficando paranóica” pensou.

Fechou a porta por completo, ligou o chuveiro, deixou a água esquentar antes. Entrou finalmente. Tomou seu banho com sabonete com cheiro de framboesa, lavou os cabelos com xampu de queratina e enxáguo-os com condicionador fortificante de algum óleo especial. Não queria mais sair debaixo do chuveiro; a água quente era realmente viciosa e de olhos fechados, relaxava mais um pouco com o líquido quente batendo em seu rosto e no coro cabeludo.

O momento foi interrompido com o barulho do que parecia ser uma batida muito forte em uma porta. Ela pulou de susto. Ofegante olhou para a porta do banheiro que se encontrava fechada. Devido ao barulho do chuveiro, ela não teve certeza do que e de onde viera aquele som. Desligou, colocou o roupão, abriu a porta e olhou cuidadosamente para o corredor. Foi direto paro o quarto – seu quarto ficava com a porta no final e de frente para o corredor – adentrou após verificar se haveria alguém e fechou com a chave.

Ainda nua, no momento em que iria colocar sua calçinha limpa, escutou outro bater na porta, mas daquela vez, ela teve certeza de que era na porta do seu próprio quarto. Seu coração estava em sua garganta e por isso tinha dificuldade para respirar e consequentemente para pensar. Quase caiu com a calcinha passada apenas por uma perna e a outra levantada. Vestiu-a o mais rápido possível, seguida por uma calça moletom cinza e uma camiseta baby-look verde claro. Ficou em silêncio para que pudesse ouvir qualquer coisa no corredor. Não ouviu nada.

Pensou em ficar o resto do dia e da noite trancada no quarto, mas precisava tirar a água do fogo para não incendiar a casa. Estava em um verdadeiro dilema. Abrir ou não abrir a porta nessas horas?

Abriu vagarosamente. Olhou atenta e amedrontada. Viu o vapor que saia do banheiro e percebeu que deixara a luz acesa. Odiou si mesma por isso. E se caso ela não tivesse esquecido? Na ponta dos pés, descalça, começou a caminhar – passo a passo lentamente – para não fazer barulho: coisas que vemos em filmes e, inconscientemente, reproduzimos. Olhou cuidadosamente para dentro do banheiro e sentiu que alguém a observava de dentro do seu quarto. Era como se houvesse a metade da cabeça de alguém: apenas um olho, metade do nariz, metade da boca, uma orelha e os cabelos pretos. Não queria pensar muito. Desligou a luz do banheiro e seguiu o corredor em direção à cozinha.

A água evaporou-se um pouco, borbulhava dentro do caneco e as grades pretas do fogão estavam levemente vermelhas. Quase se queimou com o cabo do recipiente que aquecera demais. Um barulho maior do que os dois primeiros. Pensou que seu coração realmente sairia pela sua boca. Deixou o caneco sobre a pia e correu para ver o corredor. A imagem de alguém a observando de dentro de seu quarto retornou a sua mente. Viu que, ora porta do quarto, ora porta do banheiro estavam fechadas. Bateram juntas sincronizadamente. Achou estranho, pensou em ligar para alguém, mas deixara o celular no quarto.

Ela não vira, mas havia uma sombra em frente à geladeira branca com detalhes azuis que ficava a beira do corredor. Foi até a pia e começou a passar o café. De costas, realmente havia metade de um rosto, apenas uma banda dele, de olhos bem abertos e pretos. Observava-a em silêncio. Ela sentiu olhos em suas costas e olhou para trás, mas não viu ninguém. Virada para janela da cozinha sobre a pia, tentava olhar para o quintal para averiguar se poderia ter alguém do lado de fora. O rosto ainda estava lá, por detrás da lateral da geladeira. Enquanto ela olhava para fora, lentamente o rosto foi subindo e fazendo o contorno e deixando apenas a parte de cima da cabeça por cima da geladeira. Não poderia ser humano aquilo. Tantos os olhos quantos os cabelos eram negros e estes, não muito longos, escorriam uma franja nojenta e sinistra.

Enquanto a água fervente escorria por entre o pó e caía dentro do bulo lustroso, ela virou-se e foi até a geladeira para pegar leite. O rosto sinistro não estava mais lá. Colocou um pouco dentro de outra caneca menor de cor preta e depositou sobre o fogão. Girou o liberador de gás e apertou o acendedor de faísca. No mesmo instante a televisão ligou sozinha. O volume estava alto e ela se assustou de modo que acreditou, por alguns segundos, que realmente havia alguém dentro de sua casa e que as vozes não vinham do aparelho. Sua cabeça virou-se imediatamente em direção à sala. Viu que a televisão estava ligada e por alguns segundos sentiu alívio pelas vozes não serem ao vivo, mas seu relaxamento durou muito pouco, logo se questionou o motivo do aparelho ligar sozinho.

Foi até ao aparelho, apontou à TV e diminuiu o volume e trocou de canal – para um que exibia apenas vídeos clipes. Escutou um chiado e soltou um palavrão por que sabia o que aquele som indicava: o leite que estava para esquentar tornou e ela detestava limpar o fogão. Correu e desligou o fogo. Enquanto torcia um pano sobre a pia para então começar a breve limpeza, a televisão desligou-se. Ela não limpou mais o fogão. Olhou de volta para a sala, apertou o interruptor da cozinha e a lâmpada desta acendeu o que indicava, para ela, que não havia queda de energia.

Ela não sabia e nem podia ver naquele momento, mas no corredor para o seu quarto, havia alguém ou alguma coisa. Estava parada, em pé.

Em relação ao aparelho televiso, ela preferiu acreditar que fosse algum mau contato. Serviu-se de café com leite e biscoitos. Sentou-se no sofá. Apontou mais uma vez para a TV e ela se ligou e novamente ela se assustou completamente. O volume do aparelho estava muito alto e o canal era outro: passava um programa sobre acontecimentos sobrenaturais segundo o vaticano.

Ele cuidou de abaixar o volume rapidamente, mas estranhou, tanto pelo fato do volume quanto do canal, já que sua TV se mantinha “a mesma” depois de desligar e ligá-la de novo. Ela sabia, só não queria assumir para si mesma que havia alguma coisa de errado.

O que estivera em pé no corredor, seja lá o que era não estava mais. E naquele final de tarde até metade da noite, nada de estranho acontecera novamente e ela acabou esquecendo os arrepios que sentia de vez em vez e também as coisas estranhas que achara ter visto.

Assistiu as suas novelas favoritas e foi dormir.

******

A porta do banheiro estava aberta – a luz do corredor também ligada – enquanto escovava os dentes. Tinha o costume de se olhar no espelho enquanto esfregava a escova em seus dentes e costumava também, após cuspir a espuma, abrir um largo sorriso falso para verificar, talvez, o quanto os dentes ficaram mais brancos. Inclinada sobre a cuba com uma das mães em formato de concha para levar a água que cai da torneira, uma sombra passou pelo corredor em direção ao quarto. Ela não percebeu.

Gargarejou, cuspiu e de repente sentiu um frio entrar pela porta do banheiro. Era como uma rajada de vento que dançava exatamente em sua direção. Olhou para o corredor e percebeu que a porta do banheiro mexia-se um pouco devido ao vento. A janela do banheiro encontrava-se fechada. Preferiu achar que não era nada. Secou-se na pequena toalha verde musgo que estava pendura próximo ao espelho e assustou-se ao notar que esteve estava embaçado. A água do lavatório era fria e o vapor do chuveiro já havia se dissipado. Talvez, no fundo, ela sabia o que estava acontecendo, mas como estava sozinha e não passava pela sua cabeça algum lugar para onde ir, tentava convencer a si mesma de que tudo aquilo era normal e que já acontecera antes.

De dentro do banheiro, ela não podia ver a criatura que estava parada no final do corredor em direção à cozinha. Era baixa, cabelos negros longos, pele muito branca. Os olhos eram muito grandes e escuros como quem usa maquiagem e esta está borrada e escorre pelos olhos.

Desligou a luz, e ao sair, olhou primeiramente para a cozinha onde as luzes estavam desligadas – da cozinha e da sala – mas podia ver parte do sofá iluminado pela luz do corredor. Sentiu, novamente, o vento gélido soprar de trás. Virou-se para dentro do banheiro para verificar, mais uma vez, se a janela estaria mesmo fechada, e estava. Apressou-se e antes de entrar no quarto, desligou a luz do corredor. Não teve coragem de olhar para traz porque imaginava alguém no escuro observando-a, e de certa forma, seu instinto estava certo. Ela não olhou, mas ao desligar a luz antes de fechar a porta do quarto, dentro do escuro, uma silhueta mais escura mantinha-se em pé próxima à porta do banheiro.

*******

Arrumou a cama antes de se deitar. Colocou sua bolsa e as coisas do serviço sobre uma pequena escrivaninha no canto do quarto, onde estava um notebook aberto, mas desligado. Guardou duas ou três peças de roupas no guarda-roupa branco com um enorme espelho na porta. Lembrou-se de uma superstição antiga que sua mãe costuma falar sobre dormir com guarda-roupas de portas abertas e cuidou de fechar as portas do seu.

Antes de desligar a luz do quarto, pensou se realmente não conseguiria dormir na claridade. Estava com medo de ter que andar no escuro, mesmo que por menos de dois metros de distância, após apertar o interruptor, deitar e se cobrir. Dentro desses segundos, que poderiam se tornar segundos-eternos, haveriam chances de acontecer qualquer ou muita coisa. Apertou o botão. Escuridão total. Correu até a cama e cobriu-se o mais rápido que possível.

Virada para a janela, imersa dentro da escuridão e do silêncio fantasmagórico das noites, ela tinha dificuldade para encontrar uma posição confortante que a levasse para o mundo enigmático dos sonhos. Passaram-se cerca de dez minutos após ter se deitado e cinco que adormecera. Acordou assustada: era uma paralisia do sono. Seus olhos ficaram poucos segundos abertos e logo se fecharam enquanto se contorciam para trás mostrando a parte do globo branco ocular. Tentava abri-los, mas não conseguia. Tentou gritar por alguém, mas não era capaz de emitir qualquer som. Uma gota de lágrima começou a escorrer pelo rosto enquanto seu corpo não a obedecia. Ela tentou usar toda a força e coragem que possuía para que pudesse sair daquele estado de impotência diante do que talvez possa ser o portal da realidade para o mundo dos sonhos. Um arrepio tomou conta de suas costas e correu pelos braços. Paradoxalmente, era capaz de sentir o frio mórbido, mas era incapaz de sentir seus braços e pernas. Queria poder mexer qualquer parte do seu corpo porque assim acreditava que sairia daquela experiência horrenda e sinistra.

Assim como veio, de repente se foi. Estava um pouco tonta, mas ficou com preguiça de levantar para beber água já que sentiu secura. Preferiu fechar os olhos e pedir para Deus para que pudesse dormir o mais rápido possível porque teria que acordar cedo para ir trabalhar. Escutou barulho de interruptor e preferiu acreditar que seria qualquer outra coisa que soava similarmente. De repente, sentiu um peso absurdo sobre o seu corpo; era como ser alguém a empurrasse contra o colchão. Ela sabia que aquilo não era mais paralisia porque nunca havia sido daquele jeito antes. Alguma coisa pressionava-a e parou tão rapidamente que ela teve dúvidas se realmente havia acontecido. Queria levantar-se, porém, seu medo era maior. Medo de ver qualquer coisa que pudesse estar dentro do escuro.

Escutou, mais uma vez, um barulho que não pôde identificar o que era. A primeira coisa que passou pela cabeça foi de que alguém invadira sua casa e isso significaria qualquer tipo de violência contra ela e, se tivesse sorte, roubaria tudo o que quisesse, mas que a deixaria em paz em seu quarto, na ilusão de que ela não teria escutado nada. Esse, no entanto, não era o caso.

Escutou alguém correr no corredor. Seus olhos arregalaram-se enquanto seus ouvidos, atentos, marcavam cada pisada daquela corrida que parou. A porta do banheiro bateu fortemente. Um susto misturado a um novo tipo de arrepio percorreu por todo o seu corpo. O coração batia acelerado e ela estava ofegante. Escutou a porta do banheiro ranger ao abrir lentamente. Olhou cuidadosamente para trás em direção à porta do seu quarto que ela deixara fechada. Os passos apressados ecoaram novamente e ela se virou de volta para a janela. Queria estar dormindo profundamente porque, se fosse o caso, morreria sem perceber.

Houve então, três batidas seguidas na porta do cômodo no qual se encontrava. Estava cada vez mais difícil respirar. Outro barulho de interruptor – naquele momento ela conseguiu identificar que se tratava mesmo de um interruptor. Cobriu-se por completa enquanto sentia sua respiração quente abafá-la por baixo do cobertor. Ela queria gritar, mas sua voz havia se voltado para dentro de suas entranhas deixando apenas um inchaço na garganta que usava toda sua força para fazer barulho enquanto os olhos lacrimejavam olhando para todas as direções dentro da escuridão. Silêncio.

Lentamente, ela começou a sentir um peso sobre o colchão na ponta dos seus pés – encolheu-os. Tentava chorar, no entanto, ainda era muito difícil. Seu cobertor deslizou vagarosamente para a ponta da cama como se alguém o puxasse. O arrepio paralisou-a enquanto ficava, ao poucos, descoberta. Estava encolhida com os joelhos grudados no seu peito e testa apoiada nos joelhos. Tremia muito e seus olhos, apesar de escorrerem lágrimas, estavam fechados de modo que parecia que ela fazia muita força para mantê-los daquele jeito.

Uma figura coberta surgia em pé, na ponta da cama dela. Ela de olhos fechados, com arrepios e apenas sentindo a presença de alguma coisa. Não era possível saber se o que estava por debaixo do cobertor era humano ou não.

Uma explosão tomou conta do corpo daquela moça que se encontrava completamente sozinha. Seus olhos abriram ao mesmo tempo em que sua boca conseguiu gritar e seu corpo saltou da cama. O cobertor murchou-se em sua frente no mesmo instante em que se pôs de pé e ela só foi capaz de perceber o que acontecia quando viu o cobertor pousava-se sobre o chão. Era como se o ar por debaixo do pano havia sumido de repente. Ela correu. A porta do quarto estava fechada. Abriu-a com força.

O corredor estava completamente vazio e escuro. Havia a luz da noite que entrava pela janela do banheiro e pelas janelas da cozinha e da sala. Correu, sem pensar, pelo corredor. Gritava, apenas gritava sem dizer qualquer palavra. Passou, pela sala, direto para a porta e viu o que parecia ser a sombra de uma pessoa em pé, na parede próxima à televisão. Isso a fez gritar mais e, instintamente, olhou em qualquer direção para ver quem projetava aquela imagem na parede, mas não havia mais ninguém ali com ela. Devido ao desespero, teve dificuldade em abrir a porta da sala.

Correu pelo quintal onde todas as luzes estavam desligadas. Abriu o portão e talvez ela nem seria capaz de dizer o quão rápido ela o fez. Gritava pela vizinha ao lado. Estava completamente desesperada – uma louca.

Após a luz da garagem acender, o que deu um pouco de conforto àquela moça que estava em completo desamparo, sua vizinha saiu seguindo seu marido. Estavam com olhos vermelhos, mas muito assustados. Cachorros latiam devido à gritaria.

_ O que foi? O que está acontecendo?
_ Tem alguém na minha casa! Socorro!

Fizeram-na entrar. Trancaram a porta e enquanto sua vizinha colocava água no fogo para fazer um chá, seu marido pegava o telefone para ligar para a polícia. Ele hesitou logo depois de ouvir as palavras da vizinha que não pareciam fazer sentido. Ele estava certo de que ela tivera um sonho, daqueles que parecem muito reais e a convidou a ir à casa dela para verem se ainda teria alguém lá. Foram os três.

Já era quase cinco horas da manhã e todos, logos, teriam que trabalhar.

Foram até a casa da vizinha. Todas as luzes encontravam-se desligadas. Ele notou que não havia nenhum sinal de arrombamento e todas as janelas possuíam grades. Era impossível alguém ter entrada durante a noite. Os vizinhos a acalmaram e voltaram para casa para se arrumarem para enfrentar o dia de luta.

Ela ficou sozinha, mas com as luzes ligadas e a porta da sala aberta. Não tomou banhou porque ainda sentia-se insegura e trocou de roupa na sala mesmo. Não queria ficar no quarto. Fez tudo muito rápido. Deixou para escovar os dentes no serviço, amarrou o cabelo e, sem arrumar nadar na casa, saiu.

******

Ela se lembrou do que acontecera durante a noite, poucas vezes durante o seu dia. O trabalho era bom porque servia como distração. Não comentou com ninguém o que acontecera. Falou apenas em pesadelo, mas logo mudou de assunto para não sentir medo de voltar para casa.

No final do dia, já conformada de que tudo não passara de um pesadelo e um pouco envergonhada dela mesma, chegou em casa.

Ela não sabia. Não tinha como ver, mas no momento em que colocou a chave na fechadura. O cobertor que estava – na sala – suspenso no ar formando uma figura, caiu sobre o tapete.



Ela o viu apenas sobre o chão. Não se lembrava de ter trazido para sala. Ficou com medo. Entrou – sorriu para si mesma e tentou si convencer de que todos fazem coisas das quais não lembram – e após sentir um forte arrepio, fechou a porta.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 05/11/2016

15 setembro 2016

CANÇÃO DE NINAR

imagem google

O asfalto brilhava sob as luzes dos carros e das luzes alaranjadas dos postes. O dia ainda estava claro, mas o céu era de um cinza escuro que há dias chorava sem dizer o motivo. O vento era gelado e, por alguns instantes, a garoa encorpava e tornava-se chuva leve... Era o choro mais doloroso, daqueles que não se pode mais segurar, mas que dura pouco e depois volta ao choro contido.

Vermelho. O carro estava parado e ele passou a mão na cabeça e depois na garganta que doía. Já estava próximo de casa e paradoxalmente queria chegar o quanto antes e, no entanto, virar a primeira direita e sumir no mundo. Verde. Seguiu caminho.

De dentro do carro, via as luzes acessas da varanda. Estacionou, saiu do veículo e subiu apressadamente os três molhados degraus de madeira pintados de branco que o levava até a varanda pintada de um verde muito claro. Não percebia mais chuva, nem cor e nem frio. Teve uma vontade enorme de chorar, mas segurou. Os seus dias têm sido muito pesados depois que sua mãe – Dona Nina – ficou enferma de cama devido a uma infecção. Jamais aceitara colocá-la em uma casa de repouso e há pouco tempo, dividia-se entre a tarefa de cuidá-la e trabalhar.

Uma jovem moça veio recebê-lo na porta, seus olhos estavam lacrimejados. Ele não perguntou nada, sua garganta doeu mais e sem poder falar nada entrou apressado. O ar tinha um cheiro específico de medicação. Foi em direção ao um quarto que ficava logo ao lado do hall de entrada. Sua mãe estava acordada, deitada sobre a cama, os cabelos brancos ondulados soltos, os lençóis brancos com detalhes azuis bordados por ela mesma quando ainda tinha saúde. Mal conseguia mexer a cabeça, mas fez o que podia e deu um pequeno sorriso ao ver o filho, mas logo seu rosto foi tomado de uma dor e algumas tosses. No quarto, também estavam o médico que fora chamado e que guardava uma seringa que havia acabado de usar para aplicar morfina e sua irmã que chorava e segurava um lenço azul sobre a boca. O médico fez um gesto para ele e ambos saíram do cômodo.

No hall de entrada, havia algumas pessoas – eram netas, sobrinhas, primos e primas – todos tinham os olhos vermelhos e ele nem as tinha notado a presença quando entrou. Sua vontade foi de explodir em choro, mas segurou para não desesperar os outros que apesar das lágrimas, ele sabia que estavam sendo fortes com toda a força que eles possuíam. O médico disse, em meio ao cochicho, que a situação de sua mãe era muito delicada e que muito provavelmente ela não acordaria amanhã.

Uma dor, maior que aquela que fincara seu coração nos últimos dias, acertou seu ser que, naquele momento, também se despedia de uma parte de si. Seus olhos inundaram-se e o médico, sem força para enfrentar aqueles olhos afogados em dor, abaixou a cabeça.

Tirou a blusa, olhou para todos que ali estavam e voltou para o quarto onde estava sua mãe. Foi seguido pelo médico e pela sua esposa.

Sua irmã ainda estava em pé em frente à cama. Ele agachou-se perto da cabeça da mãe e encostou-se na mesinha sobre onde havia um abajur que ele ganhara dela quando ele ainda tinha sete anos... Ela perguntou, com uma voz muito baixa, se ele estava com fome e se queria café. Ele sorriu e disse que estava tudo bem – sua voz saiu um pouco tremula e embargada devido à dor do choro contido.

Ele sabia que sua mãe, cujo amor pelos filhos era maior do que qualquer coisa, preocupar-se-ia com eles até o último instante. Lembrou-se das vezes que ele e os irmãos sentavam-se no chão para comer, porém seu pai e sua mãe não, e quando a estes era perguntado por que não comeriam, o motivo era que não estavam com fome naquele momento... Quando cresceu, aprendeu que eles não comiam porque não tinham o suficiente. Ele aproximou-se do ouvido mãe:

_ Estamos bem, de verdade. Está tudo certo e tudo – sua voz embargou – vai ficar bem. Eu tomo conta de tudo.

Uma lágrima escorreu pelo rosto enrugado de sua mãe que olhava para o teto. Ele percebeu e a secou com o polegar e continuou:

_ Agora a senhora precisa descansar um pouco. Passou no jornal hoje, que amanhã vai fazer sol. Se fizer, eu levo a senhora até a varanda.

Ele abaixou a cabeça, segurou o choro e começou a cantarolar uma canção de ninar para sua mãe.

Boa noite meu anjo,
é hora de fechar os olhos e esquecer todas as preocupações.
 Você nunca deixará de estar comigo e a qualquer lugar que você for eu estarei com você.
Boa noite meu anjo,
 é hora de dormir e descansar o corpo e a alma.
Há tanto que eu deveria ter tido e não disse.
Mas amanhã, nos encontraremos, e em meio a um abraço apertado eu direi mil vezes ‘eu te amo’.
 Boa noite meu amor maior,
 é hora de sonhar. Um sonho de uma vida cheia de alegrias, rodeada de pessoas amadas.
Desculpe-me todas as vezes que, de alguma maneira, eu te magoei.
Boa noite meu anjo,
 é hora de dormir e se amanhã a senhora já tiver partido,
 que Deus nos guie e, em breve, te encontro do outro lado.
A senhora sempre será parte de mim..”

Um choro mais longo interrompeu a canção. Ele olhou para a irmã e em seguida mirou o rosto da mãe. Ela estava de olhos fechados, não havia expressão de dor e nem de tristeza. Ela dormia... Ele sabia o que aquilo significava. Segurou forte a mão daquela mulher que lhe dera a vida milhares de vezes, a beijou e sentiu o perfume de sua carne. Sua irmã se entregava à dor... Sua esposa estava ao seu lado e o abraçou depois que ele se levantou. Ele chorava, mas ainda era um choro contigo. Depois de abraçar sua esposa, ele deixou o quarto. Sem ver ninguém em seu frente, foi para a varanda e viu a cadeira onde costumava colocar sua mãe: o vazio apertou fortemente alguma coisa dentro do seu estômago. Foi então em direção à pequena estrada que dava para o portão... Não conseguia continuar forte.

Entregou-se ao choro. A garoa virou chuva, e a chuva virou tempestade... Seu choro era um grito de dor que impulsionava seu peito com força. Ajoelhado, na lama, coberto de dor, sem luz, sem sentido. Por que nascemos? Por que morremos? Por que essa dor é tão grande que corrói o interior de alguém que simplesmente ama? Ama com tudo o que tem e que pode. Desejou intensamente voltar ao passado para que pudesse ter a chance de ser uma pessoa melhor.

Uma voz doce, um pouco receosa misturada a um choro que não se entende o porquê, o despertou, por alguns segundos, de sua dor. Ele olhou e viu sua filha de cinco anos, molhada e com os olhos vermelhos. “Não chora papai, a vovó vai ficar bem... não vai?

Chorando, ele confirmou com a cabeça e a tomou em seus braços... Ela, naquele instante, era a coluna que o mantinha em pé... Sem saber o que falar, ele chorou, apenas chorou. O choro mais doloroso, mais difícil de chorar... E com dificuldade, olhou para a filha e disse que a amava. Amava-a muito e muito.


Samir S. Souza
Recanto das Letras 15/09/2016
Código do texto: T5761727